Mundo Meio Ambiente

A solução de 2% para a mudança climática: leia artigo do autor de 'Sapiens'

Um progresso significativo custa uma fatia pequena do PIB global, e, de alguma forma, esta notícia maravilhosa foi deixada de lado no debate acalorado sobre a questão
Apocalipse evitável. Cientistas investigam efeitos da mudança climática numa colônia de pinguins na Antártica
Foto: NATALIE THOMAS / REUTERS/16-01-2022
Apocalipse evitável. Cientistas investigam efeitos da mudança climática numa colônia de pinguins na Antártica Foto: NATALIE THOMAS / REUTERS/16-01-2022

À medida que a crise climática piora, muita gente está passando da negação diretamente para o desespero. Há alguns anos, era comum ouvir pessoas negarem a mudança climática, minimizarem a magnitude da ameaça ou argumentarem que era muito cedo para se preocupar com ela. Agora, muitos dizem que é tarde demais. O apocalipse está chegando, e não há nada que possamos fazer para evitá-lo.

O desespero é tão perigoso quanto a negação. E igualmente falso. A Humanidade tem enormes recursos sob seu comando e, aplicando-os com sabedoria, ainda podemos evitar o cataclismo ecológico. Mas quanto exatamente custaria deter o apocalipse? Se a Humanidade quisesse evitar a mudança climática catastrófica, qual seria o valor do cheque que teríamos que preencher?

Yuval Noah Harari Foto: EMILY BERL / NYT
Yuval Noah Harari Foto: EMILY BERL / NYT

Naturalmente, ninguém sabe ao certo. Minha equipe e eu passamos semanas analisando relatórios e trabalhos acadêmicos, vivendo em uma nuvem de números. Mas, ainda que os modelos por trás dos números sejam complexos, o resultado final deveria nos deixar animados. Segundo a Agência Internacional de Energia , alcançar uma economia de carbono zero exigiria que gastássemos somente 2% do PIB global anual com nosso sistema de energia acima do que já gastamos. Em uma pesquisa recente com economistas do clima feita pela Reuters , a maioria concordou que chegar à neutralidade de carbono custaria apenas entre 2% e 3% do PIB global anual. Outras estimativas deixam o custo de descarbonização da economia um pouco abaixo ou acima disso, mas todas ficam na casa de um dígito do PIB global anual.

Esses números ecoam a avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climaticas , que afirmou em seu relatório histórico de 2018 que, para limitarmos o aquecimento global a 1,5°C, os investimentos anuais em energia limpa precisariam aumentar para cerca de 3% do PIB global. Como a Humanidade já gasta cerca de 1% do PIB global anual em energia limpa, precisamos somente de uma fatia extra de 2% do bolo!

Os cálculos acima se concentram no custo de transformação dos setores de energia e transporte, que são de longe os mais importantes. Porém, existem também outras fontes de emissões, como o uso da terra, a silvicultura e a agricultura. Você sabe, aqueles peidos de vaca infames. A boa notícia é que muitas dessas emissões podem ser cortadas de forma barata através de mudanças comportamentais , como a redução do consumo de carne e laticínios e uma dieta mais baseada em vegetais. Não custa nada comer mais vegetais, e isso pode ajudar você (e as florestas tropicais) a viver mais .

Podemos discutir infinitamente os números, ajustando os modelos de um jeito ou de outro. Mas devemos olhar para o cenário além da matemática. A notícia crucial é que o preço de prevenir o apocalipse fica na casa de poucos dígitos do PIB global anual. Certamente não está em 50% do PIB global anual, nem 15%. Em vez disso, está em algum lugar abaixo de 5%, talvez tão baixo quanto investir dois pontos adicionais do PIB global nos lugares certos.

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E perceba a palavra “investir”. Não estamos falando de queimar pilhas de dinheiro em algum grande sacrifício aos espíritos da Terra. Falamos em fazer investimentos em novas tecnologias e infraestrutura, como baterias avançadas para armazenar energia solar e redes elétricas modernizadas para distribuí-la. Esses investimentos vão criar empregos novos e oportunidades econômicas, e provavelmente serão economicamente lucrativos em longo prazo , reduzindo em parte os gastos com saúde e salvando milhões de pessoas de doenças causadas pela poluição do ar. Podemos proteger as populações mais vulneráveis dos desastres climáticos, nos tornarmos melhores ancestrais para as gerações futuras e criar uma economia mais próspera nesse processo.

De alguma forma, esta notícia maravilhosa foi deixada de lado no acalorado debate sobre a mudança climática. Devemos trazê-la para o centro, não somente para dar esperança às pessoas, mas ainda mais porque pode ser traduzida em um plano de ação político concreto. Nos últimos anos, aprendemos a definir nossa meta em termos de um número: 1,5°C. Podemos definir os meios para fazer isso com outro número: 2%. Aumentar o investimento em tecnologias e infraestrutura ecológicas em dois pontos percentuais acima dos níveis de 2020.

Obviamente, ao contrário do valor de 1,5°C, que é um consenso científico, a cifra de 2% representa apenas uma estimativa. Deve ser entendida como um valor aproximado, útil para enquadrar o tipo de projeto político que a Humanidade exige. Ele nos diz que prevenir a mudança climática catastrófica é um projeto totalmente viável, embora obviamente custe muito dinheiro. Como o PIB global é agora de cerca de US$ 85 trilhões, 2% são cerca de US$ 1,7 trilhão. Isso significa que, para salvar o meio ambiente, não precisamos inviabilizar completamente a economia ou abandonar as conquistas da civilização moderna. Só precisamos acertar nossas prioridades.

Assinar um cheque de 2% do PIB global anual está longe de ser toda a história. Não resolverá todos os nossos problemas ecológicos, como oceanos repletos de plástico ou a contínua perda de biodiversidade. E, mesmo para evitar mudanças climáticas catastróficas, precisamos garantir que os fundos sejam investidos nos lugares certos e que os novos investimentos não tenham seus próprios efeitos ecológicos ou sociais negativos. Se destruirmos ecossistemas para extrair metais raros que são necessários para a indústria de energias renováveis, podemos perder tanto quanto ganhamos. Também precisaremos mudar alguns comportamentos e formas de pensar, do que comemos a como viajamos. Nada disso será fácil. Mas é por isso que temos políticos — o trabalho deles é lidar com as coisas difíceis.

Os políticos são muito habilidosos em transferir 2% dos recursos daqui para lá. É o que eles fazem o tempo todo. A diferença entre as políticas dos partidos de direita e de esquerda frequentemente equivale a alguns pontos percentuais do PIB. Quando confrontados por uma grande crise, os políticos transferem muito mais recursos para combatê-la. Em 1945 , por exemplo, os EUA gastaram cerca de 36% de seu PIB para vencer a Segunda Guerra Mundial.

Durante a crise financeira de 2008-2009 , o governo dos EUA gastou cerca de 3,5% do PIB para salvar instituições financeiras consideradas “grandes demais para falir”. Será que, talvez, a Humanidade também não devesse tratar a floresta amazônica como “grande demais para falir”? Considerando-se o preço atual das terras da floresta tropical na América do Sul e o tamanho da floresta amazônica, comprar toda ela para proteger as florestas locias, a biodiversidade e as comunidades humanas de interesses comerciais destrutivos custaria cerca de US$ 800 bilhões, ou menos de 1% do PIB global.

Apenas nos primeiros nove meses de 2020, governos de todo o mundo anunciaram medidas de estímulo no valor de quase 14% do PIB global para lidar com a pandemia da Covid-19. Se os cidadãos os pressionarem o bastante, os políticos poderão fazer o mesmo para lidar com a crise ecológica, assim como os bancos de investimento e fundos de pensão. Esses fundos detêm cerca de US$ 56 trilhões . De que adianta uma pensão se você não tem futuro?

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Hoje, nem empresas nem governos estão dispostos a fazer o investimento adicional necessário para evitar a mudança climática catastrófica. Para onde vai o dinheiro?

Em 2020, os governos gastaram US$ 2 trilhões em suas forças armadas — 2,4% do PIB global. A cada dois anos, outros 2,4% do PIB global são gastos em alimentos que vão para o lixo. Os governos também gastam cerca de US$ 500 bilhões anualmente em — veja isso — subsídios diretos para combustíveis fósseis! Isso significa que, a cada 3,5 anos, os governos preenchem um cheque no valor equivalente a 2% do PIB global anual de presente para a indústria de combustível fóssil . Pior: quando se leva em conta os custos sociais e ambientais que a indústria de combustíveis fósseis provoca, sem ser obrigada a pagar por eles, o valor desses subsídios chega a impressionantes 7% do PIB global anual a cada ano.

Agora considere a evasão fiscal. A União Europeia estima que o dinheiro escondido pelos ricos em paraísos fiscais vale cerca de 10% do PIB global. Todos ano, outros US$ 1,4 trilhão em lucros são escondidos no exterior por corporações , o que equivale a 1,6% do PIB global. Para evitar o apocalipse, provavelmente precisaremos impor novos impostos. Mas por que não começar recolhendo os antigos?

O dinheiro está lá. Claro que cobrar impostos, cortar orçamentos militares, acabar com o desperdício de comida e cortar subsídios é mais fácil de falar do que fazer, especialmente diante de alguns dos lobbies mais poderosos do mundo. Mas isso não requer um milagre. Requer apenas organização determinada.

Portanto, não devemos sucumbir ao derrotismo. Sempre que alguém diz: “É tarde demais! O apocalipse está próximo!”, responda: “Não, podemos pará-lo com apenas 2%”. E quando a COP27 se reunir em novembro de 2022, no Egito, devemos dizer aos líderes reunidos que não é suficiente fazer promessas futuras vagas de 1,5°C. Queremos que eles peguem suas canetas e assinem um cheque de 2% do PIB global anual.

*Yuval Noah Harar é o autor de "Sapiens", "Homo Deus" e "Sapiens: Edição em quadrinhos". As fontes de dados deste artigo podem ser encontradas aqui .